ACADÊMICO

Limites à indenização por extravio ou dano a bagagem em voo internacional

Inicialmente, é de salutar importância destacar que o presente texto se limita a demonstrar a ausência de uniformidade existente, atualmente, na jurisprudência dos tribunais quando se tratada da abrangência da aplicabilidade das normas limitadoras de indenização contidas em convenções e tratados internacionais no âmbito de ações judiciais decorrentes do extravio/dano à bagagem ou carga em voos internacionais.

Isto porque, a despeito de nas ações que versem sobre danos materiais no contexto do transporte aéreo internacional ser aplicável as Convenções de Varsóvia e Montreal, alguns tribunais vêm adotando a tese 210 STF com restrição ao objeto da ação, por concluir que sua aplicabilidade se limita tão somente à hipótese de extravio de bagagem em voo internacional de passageiros.

Já as ações que visam a reparação de danos morais decorrentes de voos internacionais, a jurisprudência é pacífica, pois não estão submetidas à limitação prevista nessas convenções, devendo ser observada, em regra, a reparação integral do consumidor, respeitado o prazo prescricional de cinco anos, nos moldes dos artigos 14 e 27 do CDC.

1. Da necessidade de observância à aplicabilidade da limitação indenizatória regida por convenções internacionais em relação às ações judiciais que versem sobre indenização por danos materiais

Em recente acórdão [1], após divergência inaugurada pelo ministro Gilmar Mendes, o plenário do Supremo Tribunal Federal reafirmou os termos do quanto decidido no RE 636.331, com repercussão geral reconhecida, Tema 210 [2], que havia fixado tese no sentido de que as normas e os tratados internacionais limitadores da responsabilidade das transportadoras aéreas de passageiros, especialmente as Convenções de Varsóvia e Montreal, têm prevalência em relação ao Código de Defesa do Consumidor.

No julgamento ocorrido em sessão virtual de 9/2/2024 a 20/2/2024, o ministro Gilmar Mendes consignou que a tese fixada no RE 636.331 (tema 210) não fazia qualquer distinção entre transportes de bagagens ou de cargas, na medida em que o paradigma apenas havia analisado a questão segundo o quadro fático disposto naqueles autos, qual seja, a hipótese de extravio de bagagem.

Portanto, em se tratando de transporte aéreo internacional, havendo divergência entre a norma interna e a Convenção, prevalecerá o disposto nesta última, desde que respeitado o princípio da reciprocidade, por força do disposto no artigo 178 da Constituição.

Em seu voto que deu origem à divergência ao entendimento da relatora Carmen Lúcia, o ministro Gilmar Mendes ressaltou, ainda, que as Convenções de Varsóvia e Montreal englobam regras para transporte aéreo internacional de pessoas, bagagem e carga, nos termos do artigo 1º da Convenção de Montreal, promulgada pelo Decreto 5.910/2006, bem como as regras relativas aos limites indenizatórios relativos aos transportes de cargas, que estão dispostas no item 3 do artigo 22, que se aplica, também, às seguradoras em caso de ação de regresso.

Com isso, reafirmou ser entendimento pacífico do Supremo Tribunal Federal [3][4] a respeito de estabelecer que o artigo 178 da Constituição determina hierarquia específica aos tratados, acordos e convenções internacionais dos quais o Brasil seja signatário.

Neste contexto, o resultado do julgamento à luz do voto divergente do ministro Gilmar Mendes tem como grande causa e efeito pacificar o entendimento acerca da aplicabilidade das disposições contidas nas Convenções de Varsóvia e Montreal, sobretudo em relação à limitação indenizatória descrita pelo artigo 22, em ações judiciais que buscam o ressarcimento de danos materiais ou em caso de sub-rogação, no caso das seguradoras, no âmbito do extravio ou danos à carga e bagagem.

Este aclaramento da tese fixada pelo tema 210 vem em boa hora, posto que, não raro, Tribunais de Justiça possuem jurisprudências conflitantes acerca da amplitude da aplicação da limitação indenizatória das disposições contidas nas Convenções de Varsóvia e Montreal.

Este é o caso, por exemplo, do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro [5] em que se verifica a aplicação do tema 210 de forma restritiva à dano ou extravio de bagagem:

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE REGRESSO. SUB-ROGAÇÃO DA SEGURADORA. ARTS. 349 E 786 DO CC. TRANSPORTE AÉREO DE MERCADORIA. A DISCUSSÃO EM TORNO DE EVENTUAL DIREITO DE REGRESSO PARA REPARAÇÃO DE DANOS DECORRENTE DE EXTRAVIO DE MERCADORIA EM TRANSPORTE AÉREO INTERNACIONAL FRENTE À SEGURADORA NÃO SE SUBMETE AO TEMA 210 DA REPERCUSSÃO GERAL. O TERMO INICIAL DO PRAZO PRESCRICIONAL DO DIREITO DE A SEGURADORA PLEITEAR A INDENIZAÇÃO DO DANO CAUSADO POR TERCEIRO AO SEGURADO É A DATA EM QUE FOI EFETUADO O PAGAMENTO DA INDENIZAÇÃO SECURITÁRIA. AFASTADA A INCIDÊNCIA DAS NORMAS E TRATADOS INTERNACIONAIS, POR SE TRATAR DE TRANSPORTE AÉREO INTERNACIONAL DE CARGA, CONFORME PRECEDENTES DOS TRIBUNAIS SUPERIORES, TAMBÉM ESTÁ AFASTADA A LIMITAÇÃO DO VALOR DA INDENIZAÇÃO PREVISTA NA CONVENÇÃO DE MONTREAL. PRECEDENTES DO STF E STJ. MANUTENÇÃO DA SENTENÇA. NEGATIVA DE PROVIMENTO AO RECURSO” (grifo nosso)

No mesmo tribunal [6], também se encontra aplicação do Tema 210/STF de forma abrangente, tal como esclarecido pelo ministro Gilmar Mendes no acórdão acima destacado, em relação ao extravio de carga:

“APELAÇÃO CÍVEL. TRANSPORTE AÉREO. EXTRAVIO DE CARGA. Sentença condenando a empresa aérea ré ao pagamento de R$ 24.165,00 em dano material e a importância de R$ 7.000,00 em dano moral.  Aplicação da Convenção de Montreal.  Recurso Extraordinário nº 636.331/RJ, sob o regime da repercussão geral (Tema 210/STF) que estabeleceu que as normas e os tratados internacionais devem ser aplicados às questões envolvendo transporte internacional, seja este de pessoas, bagagens ou cargas, especialmente as Convenções de Varsóvia e Montreal. Corte Suprema que também decidiu ter lugar a aplicação do previsto no art. 35 da Convenção de Montreal, em detrimento do disposto no art. 27 do CDC. Fatos articulados na inicial, consistentes no extravio de mercadorias que ocorreram em maio de 2015, sendo a presente demanda ajuizada em julho de 2017. A pretensão indenizatória autoral resta fulminada pela prescrição, pois decorrido o prazo de dois anos previsto no art. 35 da Convenção de Montreal. Precedentes jurisprudenciais do STF. Custas, despesas e honorários advocatícios, que fixo em 10% sobre o valor atribuído à causa que serão suportados pela parte autora. Conhecimento e provimento do recurso”.

O mesmo conflito de entendimento pode ser visto na jurisprudência do Tribunal de Justiça de São Paulo [7], em que se verifica entendimento pela limitação do tema 210/STF à danos ou extravio ocorridos com bagagens:

“Ação de regresso – transporte de mercadorias – responsabilidade objetiva do transportador – avarias na carga transportada – risco inerente ao serviço prestado – limitação indenizatória da Convenção de Montreal inaplicável – ação julgada procedente – sentença mantida – recurso improvido.” (grifo nosso)

Noutro ponto, também no tribunal paulista [8], encontramos posicionamento em linha mais abrangente, apontando a aplicação da tese fixada no RE 636.331 (Tema 210), seja ampla, a toda e qualquer relação patrimonial relacionada a voo internacional:

“TRANSPORTE AÉREO INTERNACIONAL DE CARGA. Avaria de carga. Ação regressiva ajuizada por seguradora contra os agentes de carga e a transportadora aérea. Tema 210, do STF. Prevalência das Convenções de Varsóvia e Montreal sobre a matéria envolvendo a indenização material em transporte aéreo internacional de carga. Hipótese em que a agente de carga contratada (transportadora contratual) e sua representante no Brasil integraram a cadeia de transporte. Por sua vez, a empresa aérea (transportadora de fato) responde solidariamente pelos fatos a elas imputados. Legitimidade passiva das corrés reconhecida. Decadência. Não cabimento. Hipótese em que as rés tiveram ciência inequívoca dos danos causados às mercadorias antes do esgotamento do prazo decadencial, no recinto alfandegário, pelo “Siscomex Mantra Importação”. Existência de entendimento jurisprudencial no sentido de que a averbação de avaria no Mantra/Siscomex é suficiente a dar ciência ao transportador acerca dos fatos, prescindindo do protesto formal. Quantum indenizatório. Aplicação das normas e tratados internacionais limitadoras de responsabilidade do transportador aéreo. Incidência do artigo 22, alínea 3, da Convenção de Montreal. Ausência de declaração específica do valor da carga segurada no conhecimento de transporte aéreo (“airway bill”). Inviabilidade da pretensão ser acolhida com base no que consta na fatura comercial (“invoice”). Indenização tarifada. Incidência do limite previsto no art. 22, alínea 3, da Convenção de Montreal, promulgada pelo Decreto 5.910/2006. Precedentes. Incidência de juros moratórios a partir da citação e correção monetária a partir do desembolso. Sentença reformada em parte. RECURSOS DAS RÉS E DA AUTORA PARCIALMENTE PROVIDOS”.  (grifo nosso)

Para o jurisdicionado, felizmente, no contexto do Superior Tribunal de Justiça [9][10], as Turmas possuem entendimento uniformizado acerca da prevalência das disposições contidas nas Convenções de Varsóvia e Montreal, em ações judiciais que busquem o ressarcimento de danos materiais ou em caso de sub-rogação, no caso das seguradoras, tanto na hipótese do extravio/dano à carga como de bagagem:

“AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. TRANSPORTE AÉREO INTERNACIONAL DE CARGAS. AVARIA. AÇÃO REGRESSIVA. APLICAÇÃO DAS CONVENÇÕES DE VARSÓVIA E MONTREAL. PRECEDENTES DA SEGUNDA TURMA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E DE AMBAS AS TURMAS DA SEGUNDA SEÇÃO DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. AGRAVO INTERNO DESPROVIDO.

  1. O Supremo Tribunal Federal, no RE 636.331/RJ, ao apreciar o Tema 210 da Repercussão Geral, firmou o entendimento de que as normas e os tratados internacionais devem ser aplicados às questões envolvendo transporte internacional, especialmente as Convenções de Varsóvia e Montreal.
  2. O posicionamento da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal é no sentido de que “a Convenção [de Montreal] se aplica a transporte internacional de pessoas, bagagem ou carga, efetuado em aeronaves, compreendendo todo o período durante o qual a carga se acha sob custódia do transportador” (STF, ARE 1.164.624 ED-AgR, Rel. Ministro Gilmar Mendes, Segunda Turma, julgado em 8/6/2020, DJe 16/6/2020).
  3. Conforme entendimento jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça, “a Convenção de Montreal, internalizada no ordenamento jurídico brasileiro pelo Decreto-Lei 5.910/06, aplica-se a todo transporte internacional de pessoas, bagagem ou carga, efetuado em aeronaves, mediante remuneração” (STJ, REsp n. 2.052.769/RJ, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 20/6/2023, DJe de 26/6/2023).
  4. Agravo interno desprovido”(grifo nosso)

AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL – AÇÃO CONDENATÓRIA – DECISÃO MONOCRÁTICA QUE DEU PARCIAL PROVIMENTO AO RECLAMO DA PARTE ADVERSA. INSURGÊNCIA RECURSAL DA AUTORA.

  1. A jurisprudência desta Corte Superior tem entendido que a pretensão indenizatória decorrente de danos a cargas ou mercadorias em transporte aéreo internacional está sujeita aos limites impostos nas Convenções de Varsóvia e de Montreal. Incidência da Súmula 83 do STJ.
  2. Agravo interno desprovido”.

Verifica-se, portanto, que o recente acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal norteará de forma mais transparente a jurisprudência dos tribunais a seguir o precedente vinculante da tese 210 STF que, como visto, sua aplicação quanto a abrangência da aplicação da limitação indenizatória contida nas normas e tratados internacionais nos casos envolvendo ações que discutam dano material de extravio ou dano à bagagem ou mercadoria/carga, tem sido destoante.

Assim sendo, tratando-se de tese com repercussão geral reconhecida, se for necessário aplicar alguma penalidade à transportadora aérea – por dano, atraso ou perda de carga ou bagagem, por exemplo, as regras previstas nas convenções devem ser adotadas.

2. Da inaplicabilidade da limitação indenizatória regida por convenções internacionais em relação às ações judiciais que versam sobre indenização por danos extrapatrimoniais

De outro lado, em relação às ações judiciais que versam exclusivamente ou que também contam com pedido de compensação por dano extrapatrimonial em voos internacionais, a jurisprudência dos tribunais [11] é unânime acerca da aplicação das normas do CDC, por tratar-se de relação de consumo.

Isto porque em 2022 ocorreu uma importante atualização sobre o tema 210.

No RE 1.394.401, uma companhia de transporte aéreo alemã recorreu contra um acórdão que aplicou o CDC, e não a Convenção de Varsóvia, para condená-la ao pagamento de indenização por danos morais, em virtude de atraso do voo e extravio de bagagem de uma passageira. O Pleno do Supremo Tribunal Federal, por unanimidade, entendeu que os danos morais pretendidos não se submeteriam ao teto indenizatório presente na Convenção Internacional, devendo ser aplicado ao caso, o CDC.

Por meio desse julgado, firmou-se a tese do tema de repercussão geral 1.240, que afasta a aplicação das convenções internacionais quando a lide versar sobre danos morais: “não se aplicam as Convenções de Varsóvia e Montreal às hipóteses de danos extrapatrimoniais decorrentes de contrato de transporte aéreo internacional”.

3. Conclusão

 A abordagem no presente texto, portanto, buscou demonstrar que o recente acórdão proferido, por maioria, pelo Pleno do Supremo Tribunal Federal, estabelece o aclaramento do precedente contido no tema 210 STF para que os Tribunais pátrios adotem a prevalência das disposições contidas nas Convenções de Varsóvia e Montreal, em ações judiciais que busquem o ressarcimento de danos materiais ou em caso de sub-rogação, no caso das seguradoras, no âmbito do extravio ou dano à carga e bagagem.

Isto em razão de, ainda, haver uma resistência por parte de alguns julgadores, em restringir a aplicação das normas e tratados internacionais tão somente a hipótese de dano material em função de danos patrimoniais exclusivamente relacionados à bagagem em transporte internacional de passageiros, o que, todavia, não comporta guarida na jurisprudência do próprio Superior Tribunal de Justiça.

Ademais, o texto procurou demonstrar, também, que a jurisprudência é uníssona em relação a ausência de submissão do CDC aos tratados e normas internacionais, quando diante de ações com pedido de compensação em dano moral.


[1] ARE 1.372.360

[2] Tema 210 – Limitação de indenizações por danos decorrentes de extravio de bagagem com fundamento na Convenção de Varsóvia.

[3] ARE 1.133.572 AgR, Rel. Min. Roberto Barroso, Primeira Turma, DJe 13.9.2019

[4] ARE 1.186.944 ED-AgR, Rel. Min. Edson Fachin, Segunda Turma, DJe 21.6.2021

[5] TJRJ 0020429-82.2020.8.19.0001 – APELAÇÃO. Des(a). EDUARDO DE AZEVEDO PAIVA – Julgamento: 23/02/2022 – DÉCIMA OITAVA CÂMARA CÍVEL

[6] 0179325-34.2017.8.19.0001 – APELAÇÃO. Des(a). RICARDO ALBERTO PEREIRA – Julgamento: 31/08/2022 – VIGÉSIMA CÂMARA CÍVEL

[7] TJSP;  Apelação Cível 1014413-92.2023.8.26.0002; Relator (a): Coutinho de Arruda; Órgão Julgador: 16ª Câmara de Direito Privado; Foro Regional II – Santo Amaro – 7ª Vara Cível; Data do Julgamento: 29/02/2024; Data de Registro: 29/02/2024

[8] TJSP;  Apelação Cível 1136524-12.2022.8.26.0100; Relator (a): Anna Paula Dias da Costa; Órgão Julgador: 38ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível – 2ª Vara Cível; Data do Julgamento: 21/02/2024; Data de Registro: 22/02/2024

[9] AgInt no AREsp n. 2.283.258/SP, relator Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 25/9/2023, DJe de 27/9/2023

[10] AgInt no AREsp n. 2.006.747/SP, relator Ministro Marco Buzzi, Quarta Turma, julgado em 20/3/2023, DJe de 23/3/2023

[11] TJ-RJ – 0001320-49.2021.8.19.0033 – APELAÇÃO. Des(a). WILSON DO NASCIMENTO REIS – Julgamento: 26/10/2023 – DECIMA SETIMA CAMARA DE DIREITO PRIVADO

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