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Taxa de Saúde Suplementar e a inconstitucionalidade útil

A Taxa de Saúde Suplementar por Plano de Saúde (TPS) foi instituída no Art. 18, da Lei 9.961/00. Verifica-se que o diploma estabelece com a devida precisão os aspectos material, espacial, temporal e subjetivo do tributo. Nada obstante, houve vacilo legislativo ao tentar dispor sobre o critério quantitativo.

Ocorre que o inciso I, do Art. 20, da Lei 9.961/00, prevê que a base de cálculo da Taxa será o “número médio de usuários de cada plano” de saúde, sem definir, contudo, quais critérios devem ser utilizados para fixar esse “número médio”.

Frente ao silêncio da legislação acerca dos critérios necessários para o estabelecimento da base de cálculo da taxa, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) editou sucessivas normas infralegais, fixando os critérios para sua formação. Em outras palavras, frente à vacilante redação da lei, a base de cálculo acabou sendo instituída por norma infralegal.

A ilegalidade e a inconstitucionalidade da fixação da base de cálculo por meio de norma infralegal sempre foram reconhecidas pela jurisprudência majoritária. Em 23 de novembro de 2022, o Superior Tribunal de Justiça concluiu julgamento submetido a rito de recursos repetitivos, confirmando ser ilegal a definição da base de cálculo do tributo por norma infralegal, fixando a seguinte tese, através do Tema Repetitivo 1123:

“O art. 3º da Resolução RDC 10/2000 estabeleceu, em concreto, a própria base de cálculo da Taxa de Saúde Suplementar – especificamente na modalidade devida por plano de saúde (art. 20, I, da Lei nº 9.961/2000) -, em afronta ao princípio da legalidade estrita, previsto no art. 97, IV, do CTN.”

Pois bem. Frente ao julgado, verifica-se que a ANS deveria deixar de exigir a taxa. Veja-se.

O tema foi julgado através de rito de recursos repetitivos e a decisão transitou em julgado no último 14 de setembro.

Nesse contexto, aplica-se o § 1º, do artigo 19-D c/c artigo 19-B c/c inciso III, do 19-A c/c inciso VI, do artigo 19, da Lei 10.522/02, que autoriza as pessoas jurídicas da administração indireta a deixarem de constituir créditos tributários ou deixarem de exigir aqueles já constituído, quando há reconhecimento de ilegalidade no âmbito de rito de recursos repetitivos.

Entretanto, não se tem notícia a respeito de parecer lavrado pela Procuradoria Federal (AGU), no objetivo de respaldar a suspensão da exigência do tributo. Apesar disso, o tributo continuou sendo exigido pela ANS, relativamente às operadoras que não adotaram medidas judiciais para afastar a cobrança.

E como se a insistência na cobrança já não refletisse uma imoralidade tributária[1], curiosamente, de tempos em tempos, a ANS expede nova regulamentação sobre a matéria, como se os numerosos precedentes sobre o tema não compreendessem logicamente a edição de novas normas infralegais para a mesma finalidade daquelas já consideradas ilegais.

Nesse ponto, a Corte Cidadã, provocada por Embargos de Declaração no Recurso Especial nº 1.872.241-PE, consignou que “a tese repetitiva expressamente afirma que a definição da base de cálculo do tributo por ato infralegal” “ofende o princípio da legalidade”, de modo que “a persistência na utilização de mesmo ato normativo para a disciplina da mesma matéria estará da igual maneira contaminada”.

E nem poderia ser diferente. O Supremo Tribunal Federal, por exemplo, possui jurisprudência firme, no sentido de que a revogação da norma impugnada de forma estratégica, durante o julgamento da ação, com preservação de efeitos ou a aprovação sucessiva de norma idêntica ou de efeitos equivalentes, identifica fraude processual e tentativa de burla à jurisdição, situação que autoriza a continuidade do julgamento do mérito para alcançar todo o conjunto normativo inconstitucional, sem prejudicialidade de ação direta[2].

De outro lado, é possível verificar, em documentos produzidos pela ANS[3], que a Autarquia possui plena ciência sobre a consolidação jurisprudencial em relação à inexigibilidade da taxa, expressando, inclusive, nessas oportunidades, preocupação com a expressiva judicialização e consequente redução da arrecadação, sempre, no entanto, transparecendo que não possui qualquer intensão de adotar medidas voltadas à interrupção da exigência, antes, durante, ou depois do julgamento da matéria em repetitivo.

De acordo com o relatório de gestão da ANS, relativo ao exercício de 2022 (divulgado em 2023), a arrecadação da TPS vem caindo expressivamente a cada ano, em razão da judicialização. Em 2017, a arrecadação da TPS era de 78,83%, em 2018, de 43,46%, em 2019, de 34,25%, em 2020, de 23,98%, em 2021, de 19,50% e em 2022, de 13,87%.

Segundo a referida agência reguladora, 427 operadoras possuem ações transitadas em julgado, para afastar a cobrança da TPS, sendo que 381 destas continuam com registros ativos na ANS.

Também informa que 197 operadoras possuem ações em curso, sendo que destas, 155 operadoras possuem registros ativos na ANS.

Consta que, em dezembro de 2022, existiam 934 operadoras registradas na ANS, das quais, portanto, 57,38% questionam ou questionaram judicialmente a TPS.

Fica bem evidente a postura de valer-se da denominada inconstitucionalidade útil. Conforme as lições clássicas do saudoso professor Ricardo Lobo Torres[4], verifica-se o fenômeno quando o tributo é claramente inexigível, mas a Fazenda Pública persiste em sua cobrança, contando com a demora do Poder Judiciário em analisar a questão e com a ausência de judicialização em alguns casos.

O ministro Marco Aurélio de Melo acrescentou outra expectativa das fazendas públicas ao instituírem normas flagrantemente inconstitucionais, vale dizer, a de que, quando do controle judicial, seja obtida modulação dos efeitos. Assim, “aposta-se na morosidade da Justiça” e “proclamado o conflito da norma com a Constituição Federal, mitiga-se esta última sob o ângulo da higidez, como se não estivesse em vigor até então”[5].

Obviamente, a expectativa de lograr modulação dos efeitos está diretamente relacionada ao objetivo de afastar parcialmente ou integralmente o impacto econômico inerente aos pedidos de repetição de indébito formulados por aqueles contribuintes que bateram às portas do Judiciário para afastar a exigência indevida.

Ao que parece, no entanto, considerando ser um mercado com grande concentração, verifica-se forte reação dos contribuintes, sendo certo que a maior parte dos 13,87% de contribuintes que ainda não adotaram medidas para interromper o recolhimento da taxa e pleitear a repetição dos pagamentos indevidos realizados, o farão em breve.

Isso, contudo, não exclui a constatação de que a Fazenda Pública mais uma vez adota postura questionável sob a perspectiva da moralidade tributária. Note-se que o sistema de precedentes tem por objetivo primordial a estabilidade das relações sociais, servindo como instrumento de paz social. Não à toa, tem-se como norma primária, de modo a ter eficácia erga omnes.

Nessa perspectiva, encerrarmos nossa análise, valendo-nos, novamente, das sábias palavras do professor Ricardo Lobo Torres:

“Não raro a Administração adota conduta claramente inconstitucional na expectativa de que demore ou não sobrevenha o controle judicial da constitucionalidade, o que lhe permite aumentar a arrecadação. É a inconstitucionalidade útil, que fere frontalmente o princípio da moralidade”.[6]


[1]Torres, Ricardo Lobo. Moralidade e Finanças Públicas. In:_Estudos em Homenagem ao Prof. Caio Tácito. Renovar. Rio de Janeiro: 1997. p. 537.

[2]Nesse sentido, v.g., a ADI 3306, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJe 07.06.2011; ADI nº 3232, Rel. Min. Cezar Peluso, DJ 3.10.2008; ADI 951 ED, Rel. Min. Roberto Barroso, DJe 20-06-2017; ADI 4356/CE, Rel. Min. Dias Toffoli, DJe 12.5.2011; ADI 4545, Rel. Rosa Weber, DJe 06-04-2020.

[3]https://www.gov.br/ans/pt-br/acesso-a-informacao/transparencia-e-prestacao-de-contas/prestacao-de-contas/Relatorio_Anual_de_Gestao_e_de_Atividades_2022.pdf

[4]Torres, Ricardo Lobo. Moralidade e Finanças Públicas. In:_Estudos em Homenagem ao Prof. Caio Tácito. Renovar. Rio de Janeiro: 1997. p. 525-561.

[5]Terceiros Embargos de Declaração na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5.107/MT

[6]Torres, Ricardo Lobo. Moralidade e Finanças Públicas. In:_Estudos em Homenagem ao Prof. Caio Tácito. Renovar. Rio de Janeiro: 1997. p. 540.

A Taxa de Saúde Suplementar por Plano de Saúde (TPS) foi instituída no Art. 18, da Lei 9.961/00. Verifica-se que o diploma estabelece com a devida precisão os aspectos material, espacial, temporal e subjetivo do tributo. Nada obstante, houve vacilo legislativo ao tentar dispor sobre o critério quantitativo.

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